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Diária

Meio século de sapatos à mão


quarta, 02 outubro 2019

Em Casal Comba, mais propriamente na Rua do Paçal, número 4, mora e trabalha um senhor que é praticante de uma arte que, nos tempos modernos, já tem poucos interessados.

Anacleto Marques Luís, de 77 anos, é sapateiro e já tem ligações à profissão desde os 12 anos. O sapateiro explica que aprendeu com 5 sapateiros: “Armindo, Manuel Luís, Alberto, Tonito e o Rochinha” e a sapataria surgiu como um trabalho, numa altura em que havia poucos empregos.

Quando fez 18 anos, por volta de 1960, 1961, foi enviado para a tropa, e por lá esteve, até 1966 quando voltou a Portugal e começou a fazer sapatos de forma mais frequente.

Desde esse ano, em que começou mesmo a aprender e a dedicar-se a sério, há algo que se mantém na profissão de Anacleto, além dessa constante aprendizagem: o sapateiro só usa uma máquina, e trata-se de uma máquina de costura Durkopp. O profissional é da opinião que “à mão fica mais seguro” e por isso “nunca quis ter máquinas”.

De 1966 recorda-se que, na Mealhada, havia “uns 10 sapateiros” e que, agora, já não conhece “nenhum sapateiro” com quem trabalhou.

O sapateiro afirma que esta profissão “custa muito a aprender, não é do pé para a mão” e que, mesmo com 77 anos, continua a aprender e ainda vai “fazendo algumas coisas”.

O negócio teve várias flutuações ao longo dos anos, e Anacleto explica que, antigamente, “vinham aqui e eu tirava a medida”, sendo que agora já não se procura este calçado artesanal.

Agora, os clientes vêm porque alguém passou a palavra e recomendou a irem lá comprar um par de sapatos, que custam, segundo o sapateiro, 50 euros o par de botas.

Anacleto explica que num par de botas faz 20 euros de lucro porque o resto vai para material e leva cerca de um dia e meio a fazer um par de botas, tal como sempre levou. “As mãos não estão presas” diz o sapateiro, entre risos. Já umas sandálias levam menos tempo a fazer, mas o desafio não deixa de ser interessante para Anacleto.

As sandálias para António Guterres

Por volta de 2001, o profissional de sapataria começou a ir a feiras de artesanato, em representação da Câmara Municipal da Mealhada, e Anacleto conta que lhe “levavam tudo” e, segundo lhe explicavam, eram porque “duravam mais”.

Nessas visitas pelas feiras, já visitou Góis, Poiares, Lousã, Mogofores, Santarém e preparava os sapatos para as feiras de um ano para o outro. Entre as histórias que guarda dessas férias, recorda-se de um dia ter oferecido umas sandálias ao, à altura, primeiro-ministro de Portugal, António Guterres enquanto este o visitou na Feira de Santarém.

Em 2016 deixou de fazer as feiras de artesanato, e agora já só faz “uma botita” para seu entretenimento. Por vezes, ainda aparecem clientes, tal como “um senhor que há 2 ou 3 anos vinha buscar sapatos 2 ou 3 vezes por semana” e, quem estiver interessado num par, faz o pedido e paga o valor na entrega.

Agora, a tendência é para as pessoas irem à feira e comprarem “tudo cozido e colado”, e o que chateia Anacleto é que “aquilo dura 10 vezes menos do que os meus sapatos” e, por vezes, ainda vão levar esses sapatos comprados na feira ao sapateiro para “pedir um remendo”.

Sobre o futuro, Anacleto indica que “isto é chegar a um ponto em que acaba”. Já teve pessoas interessadas em aprender a arte da sapataria artesanal, mas o profissional nunca sentiu que “poderia ensinar os outros”. Ao olhar para o trabalho que faz, Anacleto nem pensa que seja assim tão especial: “é como os outros”.

Na sua pequena oficina pode-se encontrar de tudo, e encontra-se especialmente história. Ao olhar para o canto pode-se reparar na máquina de costura, que já tem 50 anos e, segundo o sapateiro, “tem uns dizeres”. Encostado à parede estão os moldes de madeiras para os sapatos que Anacleto faz, já com mais de 50 anos, que vieram da Raposeira, ao pé de Leiria.

Questionado sobre o fim destes moldes, o sapateiro é bastante pragmático e afirma “vão para queimar, vão-me servir para uma lareira”. Se perguntarem a Anacleto sobre as solas terapêuticas, ele responde que “isso não presta para nada, é tudo só borracha”. O que encontram num sapato feito pelo sapateiro artesanal de Casal Comba não será uma sola terapêutica, mas sim uma sola de boi. Ah, e história, mais de 50 anos de experiência.

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