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Diária

“Sinto-me mais portuguesa que russa”


sábado, 10 agosto 2019

Elena Gabdrakhmanova, natural da Rússia, acredita que nada é por acaso. A sua vinda para Portugal, em 2001, “aconteceu porque tinha que acontecer”. As dificuldades que tem superado ao longo da vida e a convivência com portugueses, povo “feliz e positivo”, tornaram-na “uma pessoa melhor”: “familiares e amigos que tenho na Rússia dizem que estou mais calma, mais paciente e até mais alegre”.

Foi no início do novo século que Elena Gabdrakhmanova e o marido, Lenar Gabdrakhmanov, decidiram emigrar: “seria por pouco tempo, o suficiente para juntar algum dinheiro, e estabilizar a vida”. Elena, com formação superior em educação básica e também em economia, era bancária do Sberbank (banco público russo) e Lenar, engenheiro eletrotécnico, trabalhava por conta própria. A Rússia estava a passar por uma “situação muito complicada”: “as lojas encontravam-se quase vazias, os preços subiram muito, as pessoas mal tinham dinheiro para comer, os salários não eram certos. Chegámos a passar fome”. Lenar “viu um anúncio a pedir casais para trabalhar numa quinta, em Espanha”, e, juntos – “a minha mãe ensinou-me que marido e mulher ultrapassam os problemas juntos” – decidiram arriscar. A filha, Sofia Gabdrakhmanova, de cinco anos, ficou com a avó materna, em Kazan, cidade russa “muito antiga e bonita”.

A viagem entre Moscovo e Lisboa fez-se de autocarro. Na hora da partida, com visto de turista, Lenar e Elena ficaram a saber pelos organizadores da jornada que, afinal, iriam para Portugal, “um país pequenino que quase não se via no mapa”. “Já que pagámos, vamos na mesma”, pensaram. No autocarro, 52 russos; no bolso, 100 euros; na pequena mala, comida enlatada e pouco mais que uma muda de roupa para cada um.

A viagem durou quatro dias. Neste período, em surdina, o casal foi avisado de que os responsáveis por esta “oportunidade” pertenciam à “máfia” – “era mesmo tráfico humano” – e que, quando chegassem a Lisboa, lhes iriam retirar os passaportes e explorá-los. “Uma senhora, que já cá tinha o marido, aconselhou-nos a fugir assim que chegássemos a Lisboa”, recorda Elena. Foi o que fizeram ao início da tarde de 18 de fevereiro de 2001, na Praça do Rossio, na capital portuguesa. Falavam “mal” inglês e desconheciam por completo a língua portuguesa.

Por indicação da tal “senhora”, três dias depois, foram para a Curia, de comboio. Os “amigos” que os esperaram na estação vieram a revelar-se “interesseiros, com ligações à máfia”. Afastaram-se deles e valeram-se de uma portuguesa que os ajudou a encontrar emprego. Mais tarde, foram viver para a Mealhada. Aqui contaram com o padre Abílio Simões, “pessoa extraordinária” que, no final de uma missa, pediu aos fiéis emprego para a família Gabdrakhmanova. A solicitação surtiu logo efeito.

Foi por esta altura, ainda em 2001, que Elena se viu forçada a regressar à Rússia, deixando cá o marido: “não aguentei as saudades da minha filha. Chorava de dia e de noite. Cheguei a perder nove quilos num mês. Fiquei mesmo com uma depressão”, conta a mãe, emocionada, que, em janeiro de 2002, voltou para Portugal já com a filha Sofia, de seis anos, e o gato Markize: “regressei assim que pude porque a Mealhada já era a minha terra, não fazia sentido estar noutro lugar”. A família cresceu em 2003, com o nascimento de Catarina Gabdrakhmanova. Os padrinhos da mais nova são portugueses que se tornaram “família”. Sofia tem agora 23 anos: é agente da PSP e vive em Lisboa. Catarina tem 15 e estuda na Escola Secundária da Mealhada. As duas sabem falar e escrever russo e conhecem as tradições do país onde os pais nasceram.

Nestes 18 anos, Elena e Lenar, que já têm dupla nacionalidade, trabalharam em várias áreas em nada relacionadas com a formação superior que adquiriram na Rússia. Hoje Elena é rececionista do hotel Portagem Bairrada Center, na Mealhada, e Lenar trabalha na Pavigrés Cerâmicas, S.A., em Anadia. “A vida deu uma grande volta e a formação não nos valeu de nada. Tivemos que aceitar o trabalho que surgiu, gostando ou não”, conclui Elena, num português com sotaque russo.

Voltar para a Rússia está fora de questão. “O futuro das minhas filhas é aqui e eu também já me sinto mais portuguesa do que russa”. Além disso, gosta de viver no “sossego” e sente-se “perfeitamente integrada” em Portugal e com os portugueses, que sempre a ajudaram “muito”. A língua não é “fácil”, mas vai continuar a frequentar cursos para aprender mais. Voltar à universidade, para estudar Medicina, é um sonho que vai adiando: “as minhas filhas estão sempre em primeiro lugar. Trabalho para investir no futuro delas”.

Desde 2001, na Rússia – observa Elena Gabdrakhmanova – pouco ou não mudou. “É um país que vive em função do dólar e onde não há classe média: só muito ricos e muito pobres. Nas notícias, diz-se que é um país forte, mas a verdade é outra. Há lá muita miséria.” Elena, que já foi “o 112 de muitos emigrantes”, continua a receber pedidos de ajuda de pessoas que querem trocar a Rússia por Portugal: “nunca os enganei. Digo-lhes sempre que Portugal não é um país rico e que, para viver dignamente, é preciso trabalhar muito. Mas, mesmo assim, as pessoas querem vir para um lugar tranquilo e seguro por causa dos filhos”. Elena compreende-os: “eu também prefiro ganhar pouco e viver em paz. Trabalhar perto de casa e saber que no final do mês recebo o salário certinho é muito bom. Além disso, em Portugal, mesmo ganhando pouco, é possível viver bem e até poupar”.